O ex-presidente Jair Bolsonaro encerrou seu mandato deixando o Brasil estagnado com desempenho ruim no Índice de Percepção da Corrupção (IPC), divulgado hoje pela Transparência Internacional e considerado o principal indicador de corrupção no mundo. Em uma escala de 0 a 100, o país alcançou apenas 38 pontos, mesma nota obtida nas duas edições anteriores do índice. Apesar da nota inalterada, o país passou da 96a para a 94a colocação, entre os 180 países e territórios avaliados — isto ocorre pela piora da nota de outros países. O Brasil ficou empatado com Argentina, Etiópia, Marrocos e Tanzânia.
A série histórica do IPC mostra que o Brasil teve uma década perdida no combate à corrupção. No período que vai de 2012, quando uma mudança na metodologia do índice passou a permitir comparação em série histórica, a 2022, o país perdeu 5 pontos e caiu 25 posições no ranking, caindo da 69ª para a 94ª colocação.
O resultado reflete o desmanche acelerado dos marcos legais e institucionais anticorrupção que o país havia levado décadas para construir. Junto com o retrocesso na capacidade de enfrentamento da corrupção, o Brasil sofreu degradação sem precedentes de seu regime democrático, como destacado pelo relatório Retrospectiva Brasil 2022, lançado hoje pela Transparência Internacional — Brasil.
O resultado do IPC 2022 coloca o país, mais uma vez, abaixo da média global (de 43 pontos), da média dos BRICS (39 pontos), da média regional para a América Latina e o Caribe (43 pontos) e, ainda mais distante, da média dos países do G20 (53 pontos) e da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a OCDE (66 pontos), bloco cuja adesão era um projeto do governo Bolsonaro.
As melhores notas foram atribuídas a Dinamarca (90 pontos), Finlândia e Nova Zelândia (os dois países com 87 pontos) e Noruega (84 pontos), e Singapura e Suécia (ambos com 83 pontos). No extremo oposto, os países com as piores avaliações pelo IPC de 2022 foram Somália (12), Síria e Sudão do Sul (ambos com 13) e Venezuela (14), todos estes envolvidos em conflitos prolongados.
Elaborado desde 1995, o IPC é composto por 13 pesquisas e avaliações de especialistas, produzidas por instituições reconhecidas internacionalmente. Para desenvolver o índice, a Transparência Internacional compila anualmente os resultados de perguntas destas pesquisas, que dizem respeito à percepção da corrupção no setor público dos países em diferentes aspectos. No caso do Brasil, o resultado teve como fonte oito destas pesquisas.
Retrospectiva Brasil 2022 — No relatório lançado, nesta terça-feira, a TI Brasil faz uma análise detalhada dos muitos retrocessos e poucos avanços que marcaram a agenda anticorrupção e de transparência no ano passado, englobando governo federal, Congresso Nacional, Judiciário, Ministério Público e o espaço cívico nacional.
Entre os fatos destacados, o documento analisa o “Orçamento Secreto” — considerado o maior esquema de institucionalização da corrupção que se tem registro no Brasil — e seus impactos sobre a qualidade de políticas públicas essenciais, a pulverização da corrupção nos municípios e, ainda mais grave, a distorção do processo eleitoral, resultando no fortalecimento dos partidos mais fisiológicos e lideranças mais corruptas da política brasileira.
O relatório identifica o Orçamento Secreto como principal moeda de compra da blindagem política de Bolsonaro no Congresso, garantida pelo Centrão. Maior beneficiário dos recursos secretos, o presidente da Câmara Arthur Lira manteve mais de 140 pedidos de impeachment paralisados e se reelegeu deputado federal, com o dobro de votos que teve na eleição anterior.
Outra peça-chave para a blindagem de Bolsonaro e seus aliados, descrito pelo relatório, foi a neutralização da Procuradoria-Geral da República. As omissões da PGR em 2022 tiveram graves consequências para a impunidade das condutas criminosas apuradas pela CPI da Pandemia, o desmanche continuado da governança ambiental e de proteção aos direitos indígenas, o avanço desimpedido de movimentos golpistas e ataques às instituições democráticas, além de retaliações a membros do próprio Ministério Público atuantes em casos de corrupção.
O relatório também analisa como o vácuo constitucional da PGR foi preenchido pela exacerbação do papel do STF e do TSE. Sem poder contar com a PGR para pedir a instauração de processos ou medidas cautelares nas duas cortes, ministros passaram a agir de ofício e homologar coletivamente heterodoxias frente às graves ameaças e ataques às instituições e à ordem democrática. Se esta foi a estratégia possível de sobrevivência das instituições, o relatório da Transparência Internacional – Brasil também alerta que a violação continuada de garantias processuais e direitos individuais trazem consequências perigosas para o Estado de direito e minam, progressivamente, a reserva de autoridade da Justiça.
Por fim, o documento analisa a redução do espaço cívico, com retração extrema do acesso à informação pública, disseminação sistemática de fake news e ataques continuados a jornalistas — principalmente mulheres. Porém, identifica forte reação da sociedade civil em 2022 e avalia como fundamentais as manifestações que reuniram o empresariado, ONGs, academia e a comunidade internacional para a dissuasão — ao menos no curto prazo — de planos golpistas, cuja existência foi posteriormente comprovada materialmente.
“Acuado desde antes da posse pela corrupção fartamente comprovada da sua família, a prioridade de Bolsonaro durante todo o seu governo foi garantir sua blindagem, que buscou através da neutralização do aparato institucional e legal que o ameaçava. O impacto disso foi muito maior do que a impunidade nos casos de corrupção e lavagem de dinheiro da família. Durante quatro anos, Bolsonaro desmontou o sistema de freios e contrapesos da democracia brasileira, atacando os três pilares de responsabilização que o sustentam: jurídico, político e social. Foi uma destruição institucional muito grave e de difícil reversão”, destaca Bruno Brandão, diretor executivo da Transparência Internacional – Brasil.
Propostas para a retomada da agenda de transparência e integridade — Para reverter os graves retrocessos dos últimos anos e sinalizar possíveis caminhos futuros, a TI Brasil lançou a “Agenda de Transparência e Integridade — Propostas para o Quadriênio 2023-2026″.
O documento traz 25 propostas consideradas cruciais para interromper a ingerência política e resgatar a autonomia de órgãos chave na prevenção e no combate à corrupção, ampliar e fortalecer o accountability nas instituições públicas, garantir transparência e o direito de acesso às informações públicas.
Entre as propostas, estão a regulamentação do lobby; a instituição da lista tríplice vinculante para a nomeação do procurador-geral da República; estabelecimento de quarentena para a candidatura eleitoral de membros do Judiciário, Ministério Público, Forças Armadas e polícias; a proteção dos denunciantes; e a recuperação do sistema de proteção ambiental e fortalecimento do combate à corrupção ambiental.
É fundamental que o novo governo demonstre, com ações concretas, que está compromissado com o resgate democrático das pautas de transparência e integridade.
Corrupção, conflito e segurança — Neste ano, o relatório global do IPC destaca a relação entre os temas corrupção, conflito e segurança. Como explica o relatório lançado pelo Secretariado da Transparência Internacional, em Berlim, a corrupção diminui a capacidade do Estado de garantir paz e segurança a seus cidadãos. O enfraquecimento das instituições policiais e de defesa dificulta o papel do Estado de controlar seu território e prevenir ameaças de violência, incluindo o terrorismo. Ao mesmo tempo, a corrupção cria novos conflitos sociais – ou agrava os que já existem – ao minar a confiança nas instituições e desgastar a legitimidade do Estado. Países que tiveram a pontuação abaixo de 50 no IPC foram palco de 80% dos protestos contra corrupção e de 82% das respostas violentas contra os manifestantes.
“O Brasil é um dos principais exemplos hoje no mundo de deterioração democrática e aumento de conflitos associados à corrupção. Eleito sequestrando o discurso anticorrupção, o ex-presidente Bolsonaro promoveu retrocessos e um desmanche institucional sem precedentes, disseminou notícias falsas e discurso de ódio, enalteceu um projeto autoritário e fomentou a violência política, que teve seu ápice no último 8 de janeiro”, diz Nicole Verillo, gerente de Apoio e Incidência Anticorrupção da TI Brasil.