Milhares de anos atrás, muito antes dos primeiros europeus colocarem os pés na América do Sul e de Carlos Chagas descrever a doença que hoje leva o seu nome, os povos nativos da Amazônia já conviviam com um inimigo “invisível”, microscópico, que somente no início do século 20 o sanitarista brasileiro viria a identificar como o Trypanosoma cruzi — o parasita causador da tripanossomíase americana, ou doença de Chagas.
Não foi uma convivência muito agradável, pelo que contam os genes dos descendentes dessas populações. Segundo um estudo liderado por pesquisadores da USP e publicado na última edição da revista Science Advances, a pressão exercida pelo parasita sobre as populações indígenas da Amazônia no passado foi tão grande que resultou num processo de seleção natural, favorável àqueles que tinham alguma resistência genética à doença, e potencialmente letal para aqueles que não a tinham.
Em outras palavras, a exposição ao Trypanosoma cruzi criou uma espécie de funil evolutivo, pelo qual indivíduos naturalmente mais resistentes a ele tiveram mais chances de seguir adiante e deixar descendentes do que os não resistentes. Nesse sentido, pode-se dizer que a doença de Chagas moldou de certa forma o genoma dos povos originários da Amazônia, decidindo quem tinha mais chances de morrer ou de sobreviver naquele momento.
Como é possível saber que isso aconteceu? Os pesquisadores investigaram o DNA de 118 indivíduos de 19 povos originários da Amazônia (como guarani, karitiana, surui e xavante) e identificaram um punhado de mutações em genes relacionados à doença de Chagas que aparecem com mais frequência nessas populações do que em outras, analisadas a partir de bancos de dados genômicos. Por exemplo, genes relacionados a características cardiovasculares, metabólicas e de reação imunológica a picadas de mosquito ou ao próprio Trypanosoma cruzi — um parasita unicelular (protozoário), transmitido pelas fezes de insetos triatomíneos, popularmente conhecidos como barbeiros.
O que chamou mais atenção foi o PPP3CA, um dos genes envolvidos na resposta do sistema imunológico ao parasita, que dava fortes sinais de ter sido alvo de seleção — com uma mesma mutação presente no DNA de mais de 80% dos indivíduos nativos investigados. Com base nessas evidências genômicas, os pesquisadores montaram um experimento com células em cultura para testar, na prática, se uma alteração nesse gene poderia conferir maior ou menor proteção contra a doença de Chagas. E foi exatamente o que aconteceu: usando técnicas de engenharia genética, eles produziram células cardíacas humanas com uma versão alterada desse gene e verificaram que elas tinham 25% menos parasitas dentro delas do que as células não alteradas, “indicando que o PPP3CA desempenha um papel ativo na infecção intracelular pelo parasita e no desfecho da doença”.
Os experimentos celulares foram conduzidos na Universidade Harvard, nos Estados Unidos, por pesquisadores brasileiros ligados ao Instituto do Coração (Incor), da Faculdade de Medicina da USP.
Fonte: https://jornal.usp.br/ciencias/doenca-de-chagas-moldou-o-genoma-de-povos-originarios-da-amazonia/