O oxigênio é vital para o organismo humano. O ar, ao entrar por nossos pulmões, provoca diversas reações químicas naturais responsáveis pelo processo de renovação das células, o que fornece energia para o corpo. Uma pequena parte desse oxigênio, contudo, transforma-se em radicais livres. De forma natural, o organismo lida bem com eles, produzindo substâncias que conseguem neutralizar a ação dos radicais livres — os antioxidantes. Essas substâncias são nossas aliadas.
No decorrer da vida, vários fatores podem favorecer um desequilíbrio nessa relação, potencializando o surgimento dos radicais livres no organismo, entre eles a poluição, consumo de alimentos com aditivos químicos e agrotóxicos, álcool, tabaco e radiação solar excessiva. Com o aumento excessivo dos radicais livres no organismo, acontece o estresse oxidativo, quando os antioxidantes não conseguem neutralizar os radicais livres, causando danos às células. Alguns problemas de saúde surgem a partir desse desequilíbrio, como envelhecimento precoce, diabetes, mal de Parkinson, urolitíase (pedras nos rins) e ainda várias doenças metabólicas.
Pesquisadores no mundo inteiro trabalham na busca de moléculas antioxidantes capazes de combater o estresse oxidativo nos organismos vivos. Um desses estudos é o desenvolvido pelo doutorando Weslley de Souza Paiva, realizado no Laboratório de Biotecnologia de Polímeros Naturais (Biopol), do Departamento de Bioquímica da UFRN, e conta com a bolsa Capes Demanda Social. Na pesquisa, a quitosana extraída da parede celular dos fungos do solo da caatinga é utilizada como antioxidante. O estudo tem como título Avaliação da capacidade antioxidante de quitosana extraída do fungo rhizopus arrizus urm 8111 e de seu derivado conjugado com ácido gálico através de testes in vitro, em células e in vivo utilizando modelo zebrafish (danio rerio).
A quitosana é um biopolímero disponível na natureza. Ela pode ser encontrada na carapaça de crustáceos, como camarão, na carapaça de insetos e também nos fungos”, esclarece Weslley. Na pesquisa desenvolvida por ele no doutorado, detectou-se que a quitosana fúngica consegue proteger o organismo vivo do estresse oxidativo, além de ter um processo bem mais simples para ser produzida, com redução de impacto no meio ambiente, pois não precisa ser purificada.
O orientador da pesquisa, Hugo Alexandre de Oliveira Rocha, do Departamento de Bioquímica da UFRN, explica que a quitosana é um polímero muito versátil. É utilizado em vários ramos industriais, como indústrias de tintas, indústria de alimentos e de medicamentos.
Geralmente, a quitosana comercial usada em várias partes do mundo é obtida da carapaça de crustáceos, contudo, como ressalta Weslley, para aplicação humana, ao usar essa quitosana, pode-se ter algumas dificuldades. “Ela tem um alto curso para ser purificada, o que precisa ser feito para se usar em humanos e não causar nenhum problema. Ela pode carrear algumas proteínas de superfície da carapaça do camarão, como a tropomiosina, presente na casca do camarão, que dá a cor meio alaranjada do crustáceo, e pode causar alergias em algumas pessoas”, revela.
Outra dificuldade, aponta Weslley, é que a produção do camarão é sazonal, quando em alguns períodos do ano a produção do produto é reduzida. Já com a quitosana fúngica, não é preciso realizar um processo caro de purificação, e ainda o processo de produção pode ser escalonado, em escala industrial, com uso de reator, sem interferências ambientais que venham a dificultar a produção de quitosana. “Como não precisamos purificar a quitosana fúngica, não é necessário utilizar ácidos e bases, muitos reagentes com descartes no final que possam vir a contaminar o meio ambiente”, frisa.
O professor Hugo Rocha reforça essa questão ambiental na utilização da quitosana extraída de crustáceos. “Se, por uma lado, há o aproveitamento de um subproduto da aquicultura marinha, diminuindo danos ambientais, por outro, há a utilização de reagentes químicos que terminam por poluir o ambiente”, pontua. Como alternativa a esse problema, destacou, em alguns países a quitosana fúngica passou a ser produzida com intuito de substituir a quitosana de crustáceos, pois sua obtenção tem um impacto ambiental bem menor.
“O Weslley já tinha a quitosana fúngica como objeto de pesquisa em seu mestrado, quando era orientado pela professora Anabelle Camarotti de Lima Batista, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Ele esteve aqui na UFRN, fazendo experimentos no laboratório que eu coordeno, o Biopol. Foi quando ele me apresentou a quitosana fúngica”, lembra Hugo.
Quando Weslley concluiu o mestrado, entrou em contato com o professor Hugo para continuar suas pesquisas no doutorado, pesquisando ainda a quitosana fúngica. A proposta foi obter um quitosana fúngica de uma espécie encontrada na caatinga potiguar/paraibana, o que valorizaria um produto regional.
O processo de criação da quitosana fúngica passa pelo crescimento do fungo. Quando tem-se uma certa quantidade, extrai-se a quitosana da parede celular do fungo e os testes são realizados para saber se essa molécula se comporta como um bom antioxidante. Nos experimentos realizados, a molécula conseguiu proteger contra o estresse oxidativo e ainda possibilitou a síntese de uma nova molécula com maior potencial antioxidante, possuindo condições físico-químicas ainda melhores, facilitando, no futuro, sua utilização em humanos.
O grande diferencial da quitosana fúngica obtida nesse estudo, segundo o professor Hugo Rocha, é a massa molecular aparente. “Quitosanas, em geral, têm massa molecular elevada, o que dificulta sua utilização como fármaco, por exemplo”, coloca. Para contornar isso, há vários protocolos de quebra (hidrólise) da quitosana, alguns até encarecem o produto obtido no final do processo. No caso da quitosana obtida no projeto, em comparação com outras quitosanas já descritas, ela é dez ou até cem vezes menor. “Essa baixa massa molecular coloca esta quitosana como um agente potencial para ser aplicado na composição de medicamentos ou mesmo agindo como o próprio fármaco presente no medicamento”, destaca.
Além disso, esse pequeno tamanho facilita a conjugação dessa quitosana com outras moléculas, o que potencializa a capacidade farmacológica/biotecnológica da quitosana. Como exemplo, por meio de um protocolo simples, barato, que combina vitamina C e uma agente oxidante, conseguiram acoplar a quitosana fúngica com ácido gálico, um componente encontrado em várias plantas, inclusive no alho. E, com isso, foi possível aumentar a solubilidade da quitosana, bem como várias de suas propriedades, como, por exemplo, o antienvelhecimento.
“Colocando um olhar mais abrangente, acreditamos que ao indicar o potencial farmacológico da quitosana do fungo que escolhemos trabalhar, possamos catalisar o desenvolvimento de toda uma cadeia produtiva, desde o cultivo do fungo nordestino e obtenção de sua quitosana até a sua aplicação em diversas atividade humanas, inclusive cosmética, alimentícia e farmacêutica”, complementa Hugo Rocha.
Segundo Weslley, a pesquisa chegou em uma fase na qual foram feitos todos os experimentos em bancada, antioxidantes, e aí foi possível identificar que a quitosana fúngica nativa, como é chamada no estudo, é um bom antioxidante. “Conseguimos sintetizar essa nova molécula, uma síntese verde, porque não usamos ácidos e bases, não promovendo o surgimento de contaminantes no meio ambiente. Verificamos que essa nova molécula potencializou em cerca de 50% a ação antioxidante em bancada”, revela.
O pesquisador comenta que já foram realizados os testes em células animais, de fibroblastos, e verificou que tanto a quitosana nativa quanto a nova molécula sintetizada não são tóxicas para células animais e possuem uma alta capacidade de proteção contra estresse oxidativo, ou seja, ela se mostrou uma boa molécula em testes em células.
“Entramos numa terceira fase do trabalho, que é fazer testes in vivo. Nesta etapa, utilizamos uma plataforma diferente. Geralmente, trabalha-se com o modelo animal, com camundongos ou ratos, mas nós optamos em utilizar a plataforma Zebrafish, um peixe bem pequeno, de água doce, que tem 70% de similaridade genética com os seres humanos”, informa.
No mundo inteiro, várias universidades e centros de pesquisa estão deixando de usar coelhos, ratos e outros animais, optando por usar o modelo Zebrafish. Entre os motivos, está o de ser uma técnica mais barata, menos laboriosa, pois a estrutura para pesquisa não precisa ser tão grande e necessita de menos etapas. E, principalmente, por não promover sofrimento aos animais ao realizar determinados testes.
Além de identificar o potencial antioxidante da quitosana fúngica, a pesquisa está sendo ampliada para verificar se a molécula também possui ação antibactericida. “Estamos fazendo pesquisas em bactérias, para mostrar que essa molécula, além de ser um excelente oxidante, é também antimicrobiana, com análises mostrando que ela tem um potencial bactericida, principalmente para moléculas gram negativas e para bactérias gram negativas clínicas, como a KPC, bactéria encontrada em infecção hospitalar”, pontua.
Weslley Paiva é aluno do Programa de Doutorado em Biotecnologia – Rede Nordeste de Biotecnologia (RENORBIO/UFRN), na área de concentração Biotecnologia em Saúde, que tem como orientador o professor Hugo Alexandre de Oliveira Rocha, do Departamento de Bioquímica da UFRN, e coorientação de Anabelle Camarotti de Lima Batista, da UFPB