Pesquisa da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) descreve um conjunto de casos de pacientes que desenvolveram grave dependência do Zolpidem, medicamento prescrito para insônia. Admitidas no Promud, o Programa de Tratamento para Mulheres Dependentes de Drogas do Hospital das Clínicas (HC), essas mulheres apresentavam tolerância, quando a mesma quantidade não faz mais tanto efeito e são tomadas doses cada vez maiores; fissura, que é o desejo intenso de consumir a substância; e sintomas de abstinência, quando havia a tentativa de retirada – algumas vezes com consequências graves, como convulsões.
A dependência e os sintomas de intoxicação, como episódios dissociativos (um estado “crepuscular”, comparável ao sonambulismo, em que não se está totalmente acordado nem dormindo), perda de memória, redução da atenção e quedas podem ser atribuídos ao uso inadequado, tanto em relação à dosagem, quanto ao tempo estendido de uso e também à finalidade: consumido como droga recreativa ou para alívio da angústia, por exemplo.
A série de casos relatados pelos pesquisadores se soma a uma literatura científica ainda escassa sobre a dependência de Zolpidem. “Inicialmente, a ideia era fazer um artigo com a revisão sistemática da literatura sobre o assunto, mas percebemos que ainda não havia sequer dados suficientes para serem revisados, e achamos que poderíamos contribuir mais com o relato de casos que recebemos no Promud”, explica Pedro Bacchi, coordenador de pesquisas do programa e um dos autores do trabalho. “Pensamos: ‘bom, a gente tem cinco pacientes e é uma amostra feminina que traz um recorte interessante, então vamos somar um pouco para essa literatura’”.
A década de 1980 viu nascer, com o lançamento dos medicamentos hipnóticos como o Zolpidem, a promessa de tratamento para insônia que não causaria dependência. Até então, o recurso farmacológico mais usado para este problema eram os benzodiazepínicos, que funcionavam, mas ao custo de efeitos colaterais, sendo a dependência o mais grave. “Eles também não tratam problemas como ansiedade – são úteis em curto prazo, como no início do tratamento ou em episódios de pânico, por exemplo, e são controlados com mais rigor, exigindo receita azul”, esclarece Pedro Bacchi.
O diferencial das drogas Z, que também incluíam a Zopiclona e o Zaleplon, seria a ação mais focada na indução do sono – em tese com pouco risco de causar dependência. Isso porque, diz o psiquiatra, era sabido que o Zolpidem atuava numa subunidade específica de um receptor dos neurônios chamado gaba A – relacionado à inibição neuronal – de forma a modular, “calibrar” sua ação. Assim, traria os efeitos sedativos mas sem a inibição, o “desligamento” de outras funções cerebrais, como faz o álcool, por exemplo, que pode dar uma sensação de relaxamento, torpor e fazer a pessoa se comportar com menos freios sociais.
Por seus efeitos, era assim, modulando o receptor gaba, que as drogas Z demonstraram agir nos estudos clínicos que permitiram sua aprovação. O problema é que elas foram testadas somente para uso em curto prazo e baixa dosagem. Quando no mundo real, nas mãos dos pacientes, doses maiores começaram a ser tomadas . O que pode ser explicado, por um lado, porque em médio e longo prazo eles desenvolviam tolerância – a dose inicial do medicamento não propiciava o mesmo efeito –, o que por si só já é um sinal de alerta para risco de dependência. Por outro, alguns pacientes foram notando efeitos diferentes quando tomavam o remédio em dosagens maiores e contextos fora da “hora de dormir”. Nesses casos, o Zolpidem agia de outra forma no gaba e em outros receptores do sistema nervoso central, promovendo euforia e bem-estar. E assim a utilização saía do padrão de prescrição. “As pessoas fazem usos que nem sempre se pode prever e só conhecemos as consequências depois”, diz Pedro Bacchi.
Quando os relatos de abuso e de graves sintomas nas tentativas de retirada se intensificaram, o remédio já era amplamente receitado – com um aumento de 30 vezes entre 1993 e 2007 nos EUA. Muitas vezes, eram prescritos por médicos de especialidades fora da psiquiatria, mas também eram tomados em esquema de automedicação. No Brasil, ainda não era exigida receita azul, o que passou a ser feito em agosto de 2024, criando mais restrições à comercialização.
Fonte: https://jornal.usp.br/ciencias/dependencia-de-zolpidem-retirada-abrupta-pode-trazer-risco-a-vida/