Inflamação em células nervosas e sinapses comprometidas: os possíveis efeitos ao feto do zika na gestação​

Desde 2015, pesquisadores vêm investigando as consequências da infecção pelo zika vírus ainda no útero. Para entender molecularmente o que acontece com as crianças afetadas, a professora do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP Patrícia Beltrão Braga estuda a doença em culturas de células. Em artigo recém-publicado na Scientific Reports, ela e seu grupo mostraram que as células do sistema nervoso de crianças com síndrome congênita do zika apresentaram neuroinflamação – resposta inflamatória no cérebro e na medula espinhal – e comprometimento nas sinapses, região localizada entre neurônios onde agem mediadores químicos transmitindo o impulso nervoso.

Nas culturas de células das crianças, o número de astrócitos – células responsáveis pela formação de sinapses, entre outras funções – era muito baixo. As células apresentaram níveis reduzidos de glutamato, um neurotransmissor excitatório – que faz com que o neurônio esteja mais propenso a realizar uma sinapse –, e alta quantidade de interleucina-6, uma proteína pró-inflamatória. Esses fatores, somados, podem resultar em inflamação no cérebro e na medula espinhal e em menos sinapses.

Os achados sugerem que a transmissão vertical – em que a mulher é infectada pelo zika vírus durante a gestação – pode afetar de forma duradoura o desenvolvimento do cérebro do feto, mesmo quando o vírus não foi identificado na criança após o nascimento, e pode contribuir para a manifestação de transtornos do neurodesenvolvimento, como transtorno do espectro autista (TEA).

“Esse trabalho surgiu da tentativa de entender como o cérebro das crianças que nasceram com a síndrome se comporta, e tentar fazer um paralelo entre o que a gente vê [nas culturas de células] e o fenótipo [características observáveis que resultam da interação dos genes com o ambiente] clínico dessas crianças”, conta Patrícia Braga. Para ela, o principal resultado que o artigo traz é, justamente, auxiliar no entendimento do papel do fator ambiental – infecção viral e transmissão vertical – na manifestação de transtornos do neurodesenvolvimento. Aprofundar o conhecimento sobre os efeitos da síndrome congênita no cérebro das crianças afetadas é o primeiro passo para o se pensar estratégias de intervenção.

Astrócitos, síndrome congênita do zika e transtorno do espectro autista
“A história desse paper começou lá atrás. A gente resolveu começar a coletar células e fazer biópsia da pele de crianças que nasceram com a síndrome congênita para modelar o que acontece no cérebro delas in vitro”, conta Patrícia. As crianças com síndrome congênita do zika que participaram do estudo fazem parte da coorte – estudo de acompanhamento de longa duração – de Recife, que teve início em 2015 e conta com quase 160 crianças. Já as crianças do grupo controle são do projeto Fada do Dente, que recebe doações de dentes de leite de crianças neurodivergentes, que possuem algum transtorno do neurodesenvolvimento, e de crianças neurotípicas, que não apresentam nenhum.

“Nós usamos biópsia de pele para não precisar esperar as crianças fazerem 5 anos, que é quando os dentes de leite começam a cair. A biópsia foi recolhida quando essas crianças eram submetidas a algum procedimento, ou cirurgia. Muitas delas precisaram fazer alguma intervenção, e nesse momento fazíamos a coleta”, explica Patrícia. As células coletadas foram reprogramadas em células-tronco pluripotentes induzidas – aquelas que voltaram ao estado embrionário – e diferenciadas em células cerebrais: neurônios, astrócitos e células progenitoras neurais, que ainda podem se tornar uma das outras duas. As culturas de células foram separadas em dois grupos, um que tinha apenas a síndrome congênita do zika, e outro que também tinha diagnóstico de TEA, e ambas foram comparadas com um grupo controle.

Outro estudo do grupo, de 2018, já mostrou que pessoas com TEA têm uma alteração nos astrócitos. O laboratório também produziu um trabalho que mostrava que, ao infectar essas células em uma cultura, o fenótipo delas se mostrava muito parecido com o que se observa em crianças com autismo: baixo número de astrócitos e presença de inflamação. Para a pesquisadora, o achado deste paper é intrigante.” Tem uma quantidade muito pequena [de astrócitos] que não foi possível detectar, e isso pode ajudar a explicar toda essa alteração [nos níveis de glutamato e interleucina-6]” que gera neuroinflamação e diminuição das sinapses.

“De alguma maneira, os astrócitos precisariam funcionar melhor para desempenharem suas funções de maneira eficiente e não haver toxicidade no cérebro, com a produção de moléculas inflamatórias e, portanto, não causar alterações como a redução de sinapses”, explica a pesquisadora. Além disso, os resultados sobre alterações em astrócitos em pessoas com TEA e neuroinflamação vêm se repetindo. “Isso mostra o quão forte o modelo é para estudar esses casos”, diz Patrícia, ao lembrar de resultados similares obtidos em outros experimentos envolvendo infecção viral.

Fonte: https://jornal.usp.br/ciencias/inflamacao-em-celulas-nervosas-e-sinapses-comprometidas-os-possiveis-efeitos-ao-feto-da-zika-na-gestacao/