Mais de 51 mil “homicídios ocultos” deixaram de ser registrados desde 2012 nos sistemas do Ministério da Saúde, segundo Atlas da Violência

Perto da hora do almoço, o roçador Damião Pertile de Andrade, de 30 anos, tirou um intervalo do trabalho e saiu para comprar uma marmita nas proximidades. Ele caminhava pelas ruas da cidade de Pinhais, no Paraná, quando encontrou quatro policiais militares. Três horas depois, o corpo de Damião chegou ao Instituto Médico Legal (IML).

O laudo da médica-legista apontou que houve uma luta corporal entre a vítima e os agentes do estado. O documento ainda descreveu uma hemorragia externa intensa nos dois olhos, sangramento no nariz, escoriações nas mãos, punhos, ombro, cotovelo, joelho, pé, além de uma fratura na perna esquerda. A família alega que a vítima sofreu espancamento. O laudo, no entanto, foi inconclusivo. Onde deveria constar o motivo da morte, há apenas a informação “causa indeterminada”.

No Brasil, quando uma pessoa morre em um contexto de violência, como aconteceu com Damião, o corpo vai para IML. Lá, a família recebe uma declaração de óbito, documento que deveria mostrar a causa da morte, mas nem sempre é isso o que acontece. Algumas vezes, mesmo quando o contexto é testemunhado, o documento marca um contraditório “circunstância ignorada” ou “causa indeterminada”, o que faz com que o homicídio não seja contabilizado pelo Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde.

A falta da informação atestada pelo médico-legista exclui pessoas como Damião das estatísticas oficiais de homicídios no Brasil e o coloca em uma outra que só cresce, a de Morte Violenta por Causa Indeterminada (MVCI), que contempla os chamados “homicídios ocultos”.

Segundo o Atlas da Violência de 2024, que usa dados organizados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), houve 51,7 mil homicídios ocultos ocorridos entre 2012 e 2022 no Brasil. Somente em 2022, foram 5,9 mil assassinatos ignorados – uma maioria de jovens, negros, de baixa escolaridade que deixaram de oficialmente engrossar o mapa da violência no país.

“Meu filho morreu algemado. Disseram que ele estava tendo um surto psicótico, mas ele estava trabalhando. Não entendi porque mataram meu filho. Ele foi torturado até a morte e no atestado não diz nada”, reclama a mãe de Damião, a diarista Ivonete Pertile, de 44 anos. Ivonete diz que conseguiu reunir cinco testemunhas, pessoas que trabalhavam em uma lanchonete e oficina perto do local do ocorrido, para relatar à polícia o que aconteceu no dia da morte do filho.

Na prática, o Brasil mata mais do que seus indicadores epidemiológicos indicam e desconhece em que circunstâncias essas mortes ocorreram. Realidade que impacta as políticas públicas, defende o técnico de planejamento e pesquisa do Ipea, Daniel Cerqueira, responsável pelo estudo. Ao mesmo tempo em que uma família não recebe a chancela do Estado sobre a causa da morte de um ente querido, os governos estaduais e federal passam a operar suas políticas de saúde e segurança sem conhecer o real cenário da violência no território.

“Quando a gente olha o percentual de mortes violentas com causa indeterminada em relação ao total de mortes violentas e compara com os países desenvolvidos, a gente vê que o nosso número está muito acima do que seria o desejável”, afirma Cerqueira. “Política de Segurança Pública é muito séria, e tem que ser feita baseada em evidências do que funciona. Mas para isso você precisa saber como [a morte] ocorre, quando ocorre, porque ocorre, para que a gente possa ministrar o remédio adequado.”

Fonte: DW Brasil

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