Do blog microbiologando da UFRGS
Transcrevemos abaixo trechos de um artigo publicado na sessão de notícias da revista Nature em 20 de outubro de 2020. Veja o artigo original aqui.
Enquanto grande parte do mundo espera por uma vacina eficaz para conter a pandemia COVID-19, alguns países na América Latina estão recorrendo a um tratamento não comprovado. Não há evidências suficientes de que a ivermectina seja segura ou eficaz como terapia para o coronavírus. Portanto, os pesquisadores estão alertando contra o uso fora dos ensaios clínicos. Mesmo assim, as pessoas na região se apressaram em tomá-la, tornando difícil para os pesquisadores testá-la adequadamente.
A ivermectina, um medicamento de venda livre barato, tem sido usada há décadas para tratar animais e pessoas infestadas com vermes parasitas – e nos últimos meses, sua popularidade como preventivo contra COVID-19 aumentou em vários países da América Latina. As evidências de que a ivermectina protege as pessoas do COVID-19 são escassas. Alguns estudos iniciais em células e humanos sugeriram que a droga tem propriedades antivirais, mas desde então, os testes clínicos na América Latina têm lutado para recrutar participantes porque muitos já estão tomando o medicamento e não podem participar do estudo.
A ivermectina chamou a atenção em abril, quando os cientistas estavam usando todas as drogas já aprovadas que podiam contra o coronavírus. Pesquisadores na Austrália notaram que altas doses de ivermectina poderiam impedir o vírus de se replicar nas células. Pouco depois, foi publicado um preprint (artigo ainda não avaliado para publicação em revista científica, processo conhecido como avaliação pelos pares) sugerindo que a droga poderia reduzir as mortes relacionadas ao coronavírus. Esse preprint foi posteriormente removido por alguns de seus autores porque o estudo não estava pronto para revisão por pares. O preprint incluiu uma análise de registros eletrônicos de saúde pela empresa Surgisphere, que forneceu conjuntos de dados sobre COVID-19 não confiáveis, que alertaram os cientistas no final de maio. Em junho, dois outros estudos importantes do COVID-19 que continham dados fornecidos por esta empresa foram retirados das revistas nas quais haviam sido publicados.
O problema é quando políticas públicas não baseadas em evidências são feitas, como tem ocorrido com a ivermectina. A implementação dessas políticas teve início em 8 de maio, quando o Ministério da Saúde do Peru recomendou o uso de ivermectina no tratamento de casos leves e graves de COVID-19. Dias depois, o governo da Bolívia acrescentou o medicamento às suas diretrizes para o tratamento de infecções por coronavírus. A cidade de Natal, Brasil, também o promoveu como preventivo – deve ser tomado por profissionais de saúde e pessoas com maior risco de adoecimento grave pelo vírus, por causa de “seu perfil farmacológico seguro, experiência clínica de uso contra outras doenças, custo e conveniência da dosagem”. Peru e Bolívia foram mais transparentes sobre o quão escassas são as evidências para o uso de ivermectina contra COVID-19: é um produto que não tem validação científica no tratamento do coronavírus.
A situação preocupa os pesquisadores que estão tentando fazer testes clínicos. Não só a popularidade do medicamento está dificultando o recrutamento de pessoas que ainda não o tenham tomado – o que é necessário para mostrar a eficácia do medicamento – mas também os médicos não documentam possíveis efeitos colaterais ao prescrever o medicamento, o que significa que dados valiosos sobre sua segurança estão sendo perdidos.
A automedicação está aumentando porque as pessoas podem facilmente comprar ivermectina em drogarias. Em junho, foi publicado um relatório sugerindo que, devido à forma como se liga às proteínas do plasma sanguíneo, o medicamento precisaria ser administrado em altas concentrações para atingir um efeito antiviral em humanos. Essas doses muito altas acarretariam um risco de efeitos adversos que seriam inaceitáveis. Embora a maioria das pessoas tolere bem a ivermectina, ela tem sido associada a tremores, convulsões, letargia e desorientação. Uma análise de 2018 encontrou casos de danos cerebrais e coma em pessoas com uma mutação genética que permite que a ivermectina passe da corrente sanguínea para o cérebro.
Isso não significa que os pesquisadores desistiram de coletar as evidências necessárias. Ainda assim, os pesquisadores podem nunca ter dados suficientes para justificar o uso da ivermectina se sua administração generalizada continuar na América Latina. A popularidade do medicamento “praticamente cancela” a possibilidade de realização de ensaios clínicos de fase III, que exigem milhares de participantes – alguns dos quais fariam parte de um grupo de controle e, portanto, não poderiam receber o medicamento – para estabelecer sua segurança e eficácia. À medida que o uso não controlado de ivermectina cresce mais difícil será coletar as evidências que as agências reguladoras precisam sobre o real papel desse medicamento contra a COVID-19.
FONTE: Latin America’s embrace of an unproven COVID treatment is hindering drug trials. Emiliano Rodríguez Mega. Nature 586, 481-482 (2020). doi: https://doi.org/10.1038/d41586-020-02958-2