Samba de Canguleiro – As origens do samba potiguar

Quando se ouve um samba já dá aquela vontade de arriscar uns passinhos. Quem nunca, mesmo sem saber direito, tentou dar aquela “sambadinha”, pelo menos uma vez na vida? Mas esse ritmo tão brasileiro, que parece difícil (eu que o diga) de ser dançado é conhecido no mundo inteiro como uma marca genuína da identidade cultural do povo brasileiro. E essa marca vai além do ritmo, da dança ou do canto. É uma manifestação da alma de uma nação inteira.

É impossível não ser contagiado pelo som, pela energia dessa música forte e ritmada. O que pouca gente sabe é que o samba nasceu na roça e num dos momentos mais tristes da história do Brasil. O samba é filho da senzala. Sua matriz veio da África, junto com os negros trazidos para cá como escravos para trabalhar nas lavouras de cana e café. Durante três séculos, o som dos tambores e batuques ecoou pelas fazendas do Nordeste, do Rio de Janeiro e São Paulo.

Sim, o nordeste. Nossa região é berço do samba e dos bons. E assim como em várias partes do Brasil, o nosso samba também se consolidou na periferia. Aqui em Natal, ele encontrou abrigo e morada no bairro das Rocas no tempo em que a cidade, como relata o folclorista Luís da Câmara Cascudo, se dividia entre Xarias e Canguleiros. Quem morava na parte alta comia o peixe Xaréu e por isso se auto declarava Xaria; na parte baixa, eram os comedores de cangulo. Dessa preferência culinária surgiu uma forte rixa entre os moradores. Porém essa disputa também proporcionou a busca por uma identidade, inclusive musical. Os canguleiros das Rocas eram, em sua maioria, negros ou descendentes e lá havia espaço para o samba de roda, para as escolas de Samba como o Balanço do Morro e Malandros do Samba. Além de nomes como Debinha e Mestre Zorro que até hoje são reverenciados como ícones do samba potiguar.

Já nas décadas de 80 e 90, inspiradas por grupos cariocas, surgiram bandas como Divina Xama e Verdadeira Chama que arrastavam multidões em seus shows. A principal referência musical desses grupos era o grupo Carioca Fundo de Quintal que acabou influenciando toda uma geração de músicos de samba em solo potiguar. Foi assim também com o músico e idealizador do projeto cultural Ribeira Boêmia, Leonardo Galvão. “A gente buscava um som parecido com o Fundo de Quintal, mesmo que às vezes tivesse um instrumento de sonoridade mais nordestina como um triângulo ou uma sanfona. Mas era samba de raiz que a gente tocava e que defende até hoje”, explica o artista. Iniciado em 2012, o projeto cultural que tinha também como objetivo revitalização do bairro da Ribeira, acabou ganhando repercussão nacional ao fazer o intercâmbio do samba potiguar com o feito Brasil a fora. Pela roda de samba passaram músicos locais com suas composições como Valéria Oliveira, Khrystal, Everaldo Rodrigues, Debinha, Mestre Zorro e tantos outros. Mas também há espaço para receber convidados ilustres como Roberta Sá, Diogo Nogueira, Dudu Nobre, Tereza Cristina, Xande de Pilares, Leandro Lehart e tantos outros.

E as rodas de samba se espalharam por Natal, da Zona Norte a Zona Sul da cidade. Um movimento que aconteceu de forma natural reafirmando que o samba é um gênero musical brasileiro que derruba preconceitos e barreiras culturais unindo a todos. É como na letra de uma canção bem conhecida “Quem não gosta de samba. Bom sujeito não é. Ou ruim da cabeça ou é doente do pé. Eu nasci com o samba, no samba me criei. Do danado do samba nunca me separei”.

Quem nasceu com o samba e se criou com ele foi a cantora Dodora Cardoso. A música e o samba vieram com o pai militar, “Sargento Omar” que além de músico, era poeta e repentista. Já a mãe “Ritinha de Omar” fez parte do coral da Igreja de Sant’Ana em Caicó. Ela e a família chegaram a morar no Rio de Janeiro e foi lá que Dodora conheceu o samba através das boas companhias do seu pai. Eram amigos do Sargento Omar, entre outros: Elino Julião e Severino Ramos que foram para a capital fluminense tentar a vida tocando forró. Mas acabaram tendo que se virar com o ritmo que dominava a cena musical carioca: o samba. Tanto que Severino Ramos escreveu um clássico em 1966 em parceria com Jackson do Pandeiro, “A ordem é samba”, na qual a letra fala sobre essa preferência do público pelo ritmo. Para Dodora, o samba é uma expressão de todos os brasileiros. “Não tem diferença no samba feito aqui ou no Rio ou no Sul do Brasil. Falta talvez mais união, respeito e acabar com essa xenofobia que às vezes os nordestinos sofrem . O nosso samba não deve nada para ninguém e não precisa de nada para melhorar. Talvez o público precise ouvir e prestigiar mais os compositores e artistas de samba que são potiguares”, finalizou a cantora que tem 43 anos de carreira e é conhecida como “A dama do samba”.

E toda essa produção, a que Dodora se referiu, tem em muito a contribuição de dois irmãos e músicos: Chico Bethoven e Jubileu Filho. Desde 2009, eles deram início às produções musicais em um estúdio próprio. Em 2010 foram procurados pelo Grupo Arquivo Vivo para produzir o primeiro álbum, que também é o primeiro disco de samba autoral do Rio Grande do Norte. Nessa mesma época produziram o DVD de 30 anos de carreira de Debinha Ramos no qual o repertório consiste em clássicos do gênero e que foram sucesso durante a centenária história discográfica do samba. A partir daí, surgiu uma parceria incrível com esses artistas. E foi produzida a coletânia “Mestres do Nosso Samba” , fruto de uma pesquisa de Debinha Ramos e Raphael Almeida do repertório autoral dos sambistas do bairro das Rocas, até então, um dos poucos redutos do samba em nossa capital.

“Mestre Zorro, o próprio Debinha e muitos outros compositores que até então não tinham suas obras registradas. Eram quase que completamente desconhecidas e foram interpretadas por diversos cantores como Valéria Oliveira, Marcos Souto, Carlos Britto, Agarci dos Santos, Dodora Cardoso, Damiana Chaves e muitos outros”, lembra Chico Bethoven.

A dupla de irmãos também produziu o disco “Samba do Canguleiro”, com o repertório organizado pelo mestre Zorro e financiado pelo Departamento de Antropologia da UFRN, através de um projeto coordenado pela professora Dra Elizabeth Coradine. A partir daí a gravadora deles, a Beju Estúdio, virou o estúdio do samba autoral de Natal, onde já foram gravados mais de 500 sambas de compositores potiguares, de 2009 até os dias de hoje.

O movimento do samba em Natal ficou mais forte durante a segunda década deste século, com o sábado dedicado ao samba numa das casas noturnas mais badaladas da cidade, o Buraco da Catita, e projetos como a Quinta Viva do Samba, realizado em praça pública, liderado pelo grupo Arquivo Vivo que também influenciou diversos outros projetos de samba pelo centro histórico de Natal.

Sem dúvida nenhuma, o samba virou moda em nossa capital na última década e proporcionou muitos intercâmbios, como o disco “Em Águas Claras”, tributo a Clara Nunes, de Valeria Oliveira, gravado no Rio de Janeiro, produzido por Rildo Hora, o maior produtor e arranjador de samba do Brasil e que teve execução instrumental de músicos do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Norte, como Jubileu Filho e Deo do Pandeiro.

A partir desse trabalho, a cantora Valeria Oliveira resolveu assumir de vez o samba e seu protagonismo em um dos mais importantes projetos musicais de Natal: “Cores do Nosso Samba”, que é sucesso de crítica e público.

Mas a pandemia acabou também atrapalhando esse crescente movimento. Atualmente, a maioria dos artistas tem produzido e gravado com ajuda de leis de incentivo cultural, principalmente a Aldir Blanc. “São tempos bem difíceis para o samba e para a música em geral. Nós artistas fomos os primeiros a suspender as atividades e não sabemos quando iremos voltar. Mas vamos voltar com tudo quando puder”, prometeu o músico e produtor cultural Leonardo Galvão.

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