Alice Carvalho nem percebeu ter se agachado em cima de um formigueiro, tamanha era a euforia ao receber no celular, em dezembro de 2020, a minuta do contrato para estrelar “Cangaço novo”, série do Prime Video que estreou em meados de agosto e ganhou cotação máxima em crítica de Patrícia Kogut. Naquela época, momento de ligeira trégua da pandemia de Covid-19, a jovem voltava da praia em Natal, cidade onde morava, e a amiga que a acompanhava até se assustou. Alice se debulhava em lágrimas. Mal falava.
— Nunca tinha recebido um décimo daquele cachê na vida — relembra a potiguar, de 27 anos, que não chegou a ser devorada pelas formigas. — Poderia me estruturar como mulher adulta, com um emprego que fosse levado a sério pelo mundo e, principalmente, por mim mesma. Iria parar de fazer um milhão de coisas para chegar ao fim do mês com R$ 600. Só conseguia pensar que minha vida mudaria para sempre.
É o que, de fato, vem acontecendo. Em “Cangaço novo”, Alice desconcerta o público com Dinorah Vaqueiro, a única mulher de uma quadrilha de assaltantes de banco da fictícia Cratará, cidade do sertão do Ceará. Impiedosa com os “cabra-machos” locais (e com o próprio irmão, Ubaldo, que vem de São Paulo e entra para o bando, interpretado por Allan Souza Lima), ela é sucesso nas redes sociais. No X (antigo Twitter), a turma fez montagem com a personagem na capa da revista Time e como campeã do reality show “A fazenda”, cuja edição 2023 nem começou. Já circula também até a Barbie versão Dinorah Vaqueiro.
— Alice encarou esse trabalho como a grande oportunidade da vida — diz Aly Muritiba, diretor da série juntamente com Fábio Mendonça. — Ela mostrou um brilho e sangue nos olhos que nem sempre encontramos por aí.
Esta característica lhe rendeu três grandes trabalhos após o término da gravação da série. O primeiro foi o filme “Angela”, cinebiografia de Ângela Diniz nos cinemas desde o último dia 7. No longa de Hugo Prata, ela interpreta Lili, empregada da socialite (Isis Valverde) na casa em que ela foi assassinada em Búzios. Depois, roteirizou e dirigiu o álbum visual “Navio”, da banda BayanaSystem, no momento em pós-produção.
O terceiro, ainda em curso, trouxe a atriz para sua mais longa temporada no Rio. Desde março, ela tem gravado “Guerreiros do sol”, novela exclusiva do Globoplay que se passa entre os anos 1920 e 1930 e com estreia prevista para 2024. No folhetim, é Otília, uma mulher simples que se envolve amorosamente com a militante feminista Jânia, papel de Alinne Moraes.
— Quando Alice chegou de mala e cuia no Rio lembrei de mim mesma quando vim pela primeira vez a trabalho — recorda-se Alinne, nascida em Sorocaba (SP). — Ela está sempre aqui em casa com a minha família, saímos juntas, vamos a shows, festas, almoços. É minha amiga, parceira.
Sucesso regional
Nascida em Natal e criada em Parnamirim, nos arredores da capital, Alice é filha de mãe solo, que engravidou aos 16 anos e hoje é a administradora da “pessoa jurídica” da atriz. A criação da menina teve a participação fundamental da avó, costureira e cabeleireira, e do avô, cartógrafo e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Foi essa trinca que resolveu colocar aquela criança “muito danada” em contato com as artes em curso de teatro na escola, na igreja e em oficinas:
— Com 12, 13 anos, me apaixonei também por dramaturgia e passei a escrever para poder brincar de atuar.
A brincadeira ficou séria e, com apenas 16 anos, levantou o primeiro espetáculo, “Do amor”. A montagem começou com dinheiro que pediu de aniversário aos parentes, e foi dando certo ao ponto de ser encenada no Teatro Alberto Maranhão, em Natal.
— Era uma comédia e formava fila na esquina. Eu, uma moleca, lotando teatro… — relembra Alice, que escreveu um livro derivado do espetáculo um ano depois e também foi outro sucesso, até adotado como material didático no estado. — Era literatura infantojuvenil, quando, na verdade, eu era a infantojuvenil (risos).
Foi nessa toada de peças, séries independentes para a internet (Aly Muritiba, inclusive, a viu pela primeira vez em “Septo”, websérie que ela escreveu, produziu e atuou) e uma pequena participação em “Segunda chamada”, da TV Globo, que Alice ia sobrevivendo artisticamente. Com a pandemia, achou que o sonho havia chegado ao fim.
— Nessa época, lembro de perder o chão e achar que estava acabado pra mim — diz a jovem, que fez o primeiro teste de “Cangaço novo” em 21 de março de 2020, dia em que o governador João Dória decretou quarentena em São Paulo por causa da Covid-19. — Voltei a escrever roteiros publicitários, peguei uns frilas que não tinham nada a ver com o que eu estava fazendo já há um tempo. Fiquei muito desmotivada com o ofício de atriz.
Saudade de casa
Morando num hotel no Rio com duas malas enormes e um tanto de coisas guardadas na casa da mãe, Alice Carvalho experimenta uma existência circense desde que topou interpretar Dinorah Vaqueiro. As gravações da série do Prime Video no sertão da Paraíba duraram oito meses. Depois, ela foi pingando em outros estados, como Bahia e Pernambuco até atracar no Rio para o trabalho em “Guerreiros do sol”, do Globoplay. Sente saudades de casa?
— Nossa, nem fale essa palavra que meus olhos já começam a marejar. É o sentimento que mais tenho convivido. Sinto saudade do meu terreiro, dos meus avós, da minha mãe… — (Vivo de forma) totalmente cigana, mambembe. Entreguei meu apartamento em Natal, que só consegui alugar depois de “Cangaço”. Mas nunca morei lá (risos) — diz Alice, sem saber ainda onde será seu CEP definitivo daqui para frente.
A falta de suas raízes ajuda na composição de Otília, uma “personagem atravessada também pela saudade”:
—Uso como motor para estar de pé todo dia de manhã e gravar.
E não tem sido fácil uma rotina fácil: ultimamente são seis dias de gravação para um de folga. O ritmo é completamente diferente dos projetos a que estava acostumada, mas estar numa novela (por mais que seja um folhetim pensado para o streaming) remete a sua formação mais básica:
—Assistir a novelas e a grandes atrizes foi o meu primeiro contato com a arte de interpretar. Aprendo sobre o meu corpo e sobre minha forma de pensar em cena todos os dias. Sempre, ao chegar em “casa”, anoto um monte de coisas. Já estou no terceiro caderno.
Independentemente do que tenha assistido na TV, são artistas nordestinos suas maiores referências: Titina Medeiros, Quitéria Kelly e Enio Cavalcante, este último colega de “Cangaço novo” (o bandido Jeremias) e de “Guerreiros do sol”. Ela não tem dúvidas de que hoje há maior representatividade regional nos castings — a começar por seu próprio voo. A experiência no set de “Angela”, para ela, também é um sinal disso. Se, a princípio, teve aulas para amenizar o sotaque, quando começou a preparação, o diretor Hugo Prata mudou de ideia.
— Ele falou: “Podemos esquecer isso. O povo nordestino está espalhado por vários lugares do Brasil há muito tempo, carregando esse país no braço. Vamos assumir você, com seu sotaque”. E tenho visto o mesmo em alguns folhetins — diz, antes de relembrar a atriz Quitéria Kelly como a coordenadora Neide, de “Malhação” (2019), potiguar que não precisou camuflar o jeito de falar. — Começamos a nos ver e não vamos parar. O audiovisual vai ser um agente dessa mudança tão profunda.
Com informações do O Globo