A pesquisadora cearense Claudia Leitão (consultora do tema para Organização Mundial do Comércio) será uma das atrações do evento. Ela vai falar sobre “Economia Criativa” e conversou com a reportagem da Tribuna do Norte.
O tema de sua conferência neste Seminário Municipal de Cultura será gestão cultural e os recursos financeiros. Quais são os principais desafios nesta captação financeira do ponto de vista do setor público e privado? Seja na área pública ou privada, captar recursos é sempre uma ação complexa e carrega consigo algumas ambiguidades. Quando operadores governamentais captam recursos por meio das leis de incentivo, eles acabam concorrendo com captadores privados pelos mesmos recursos. Secretários ou mesmo ministros da cultura tradicionalmente captam recursos de estatais, bancos e outras empresas para seus projetos. Nesse sentido, gestores públicos concorrem com gestores privados na busca de recursos incentivados. A captação privada, por sua vez, também pode ser problemática. Captar recursos junto a empresas para a indústria cultural é muito mais fácil do que para projetos culturais inovadores.
A Senhora foi uma das criadoras e primeira gestora da Secretaria de Economia Criativa do extinto Ministério da Cultura (MinC). Desde que chegou ao Brasil, o conceito de economia criativa já é bem compreendido pelos setores cultural, político e econômico? Lamentavelmente não. O conceito é dinâmico e necessita ser aprofundado e contextualizado. Sem institucionalidade essa tarefa se torna impossível. O primeiro grande desafio é distinguir economias criativas das indústrias criativas. Gosto da perspectiva africana de ‘economias criativas’ no plural, compreendendo que a diversidade dos setores culturais e criativos demanda tratamentos diferentes aos que são naturalmente diferentes. A economia do circo não é a mesma dos games, a economia do artesanato não é a mesma do design. Quanto às indústrias criativas, essas dizem respeito à produtos que possuem escala pois atendem a grandes mercados. Essas indústrias são tradicionalmente concentradoras além de contribuírem para a precarização do trabalho. O Brasil necessita urgentemente de políticas públicas para as suas economias criativas pois somos um país da diversidade cultural e dos pequenos empreendimentos criativos.
É possível analisar o segmento da economia criativa neste pós pandemia e na retomada? A pandemia trouxe algum ganhou ou só perdas? Quais desafios a classe cultural e as secretarias de cultura têm pela frente? A pandemia expôs o campo cultural a desafios sem precedentes que continuam a demandar soluções excepcionais. De um lado, a cultura foi penalizada pela suspensão de suas atividades presenciais (shows, espetáculos, peças de teatro, festivais etc), por outro lado, a cultura nunca esteve tão presente no cenário pandêmico. Todos nós concordamos qu sem fruição cultural, teríamos atravessado com maior estresse e sofrimento esses anos. Enfim, a cultura de alguma forma nos ‘salvou’ nesses tempos de medo, morte e isolamento. São muitos os aprendizados que podemos obter a partir da covid 19. No que concerne à cultura é preciso constatar, primeiramente, sua capacidade de reinvenção e de resiliência. Mas vale observar que o vírus somente revelou as dificuldades e os desafios tradicionais do campo das artes e da cultura: informalidade, burocracia do Estado no fomento cultural, infraestrutura insatisfatória de apoio às dinâmicas econômicas dos produtos culturais (ausência de ecossistemas criativos), carência de formação, dados confiáveis insatisfatórios para o planejamento e a tomada de decisão dos gestores etc. O crescimento dos conteúdos digitais foi e segue significativo, e aponta para novos modelos de negócio (museus virtuais, novos streamings para a música e o audiovisual, ampliação de plataformas digitais de compra e venda de artes visuais, livrarias digitais, alianças entre as indústrias do podcast e o setor editorial etc), mas é urgente desenvolver políticas que permitam remunerar dignamente os criadores e não somente os distribuidores. No contexto em que vivemos (com ou sem pandemia) políticas públicas de cultura devem se cada vez mais fortes para apoiar os trabalhadores das atividades criativas. Para isso, é necessário criar fundos e subvenções de apoio aos empreendimentos culturais, modelos de plataformas de amplo acesso que incentivem um percentual de acessos gratuitos a conteúdos, créditos orientados para pequenos empreendedores, novos marcos regulatórios (trabalhistas, ficais, civis) para a estruturação dos ecossistemas criativos, acesso a novaà inovação e às tecnologias, incremento das parcerias público-privado, entre outras medidas necessárias ao campo cultural/criativo.
A criação do sistema de Micro-empreendedor Individual no setor cultural trouxe uma certa profissionalização e benefícios para o trabalhador da cultura, entretanto deixou muitos de fora. Como as políticas públicas podem incentivar a economia criativa e o empreendedorismo individual sem negligenciar artistas distantes dessa realidade, como grupos de cultura popular? A iniciativa do Sebrae de apoiar a formalização dos micro e pequenos empreendedores individuais no campo das artes e da cultura deve ser louvada. Mas o contingente dos MEI é ainda pouco representativo face ao universo desses empreendimentos/empreendedores no Brasil, grande parte deles na informalidade. Essa realidade não é característica somente dos setores artísticos e culturais, mas está presente nos diversos setores da economia tradicional. Os dados relativos à informalidade na América Latina são preocupantes: mais da metade da economia nessa região é informal. Ora, os indicadores tradicionais somente reconhecem a economia formal, o que deslegitima quaisquer possibilidades de formulação e implementação de políticas públicas efetivas, eficientes eficazes para o desenvolvimento sustentável dos territórios.
De que forma o Sistema Municipal de Cultura, que será criado nesta gestão, pode fortalecer o setor cultural como um todo e beneficiar a sociedade civil para que tenha acesso a produtos culturais? O fortalecimento da arquitetura jurídico-política da cultura no Brasil é uma prioridade. Afinal, somos uma federação constituída de três esferas que devem estar integradas: a federal, a estadual e a municipal. A exemplo do sistema de saúde e de educação, também a cultura deve consolidar o seu Sistema Nacional, para que, de forma complementar e colaborativa, União, estados e municípios possam formular, implementar e monitorar políticas culturais em todo o País. A institucionalização do Sistema Municipal de Cultura de Natal é estratégica para o Rio Grande do Norte, para o nordeste, mas, sobretudo para o Brasil, especialmente, em tempos obscuros em que o Governo Federal, ao extinguir o Ministério da Cultura, vem aniquilando e esvaziando as múltiplas institucionalidades da cultura. A destruição impetrada pelo governo federal amplia a responsabilidade dos estados e dos municípios, que devem agir para dar continuidade às históricas conquistas do Brasil no âmbito das políticas públicas de cultura.
Qual o formato ideal para uma gestão trabalhar os recursos financeiros que dispõe? Leis de incentivo, fundos de cultura e editais? Leis de incentivo, fundos e editais são instrumentos de uma política, mas não constituem uma política. É importante que se compreenda os significados, as dimensões e o alcance de uma política pública que deve ser formulada para todos os brasileiros. Uma pasta de cultura deve ampliar a participação social e as novas de governança para dar cada vez maior protagonismo à população. São as comunidades no território que devem e podem encontrar soluções às demandas que considerem prioritárias. É tarefa do Estado criar as condições para essa oitiva.
De que maneira o fomento público de festejos culturais como Carnaval, São João e datas históricas gera retorno para a economia das cidades? Quais sugestões daria para incrementar esse investimento e torná-lo mais duradouro? Territórios são espaços naturalmente assimétricos, especialmente, nas cidades. Políticas públicas de cultura devem estar atentas aos bens comuns das cidades e às ameaças de privatização desses bens assim como dos espaços urbanos. É necessário perceber que a cidade é o espaço, por excelência, de disputa entre indústrias culturais e as economias culturais/criativas dos pequenos empreendedores. A festa é certamente uma das maiores expressões culturais do Brasil, mas o que observamos é que essas manifestações da nossa diversidade cultural vêm sendo transfiguradas, perdendo sua ânima simbólica, sua vitalidade comunitária, em nome da mercantilização, prioridade do sistema capitalista global. A economia das festas no Brasil, caso sejam apoiadas por efetivas políticas públicas ( e não políticas de governo…) podem ser vetores estratégicos para a desconcentração de renda e a sustentabilidade dos territórios urbanos.
Na aplicação recursos das leis de cultura, por exemplo a Lei Rouanet, existe um item que fala do ‘custo-pessoa’ para projetos de acesso gratuito, uma forma de equilibrar o investimento do projeto cultural e seu impacto em atrair público. Essa é uma forma que as leis de cultura municipais devem adotar para não haver distorções, pois muitas vezes um projeto “pag” mas subsidiado tem mais impacto do que outros com entrada franca? Os produtos culturais têm características próprias que os distingue dos produtos tradicionais. A cultura não responde unicamente á demanda de mercados, ela própria é capaz de produzir novos consumos. Se tenho sede e bebo água, resolvo minha demanda. Mas se leio um livro e este livro me afeta, passarei a ser um consumidor contumaz de novos livros. Esse princípio é importante para uma reflexão mais profunda e estruturante sobre fomento e financiamento à cultura, sobretudo, para que se possa enfrentar vários mitos que atravessam a demanda e o consumo cultural no que se refere à gratuidade ou não no acesso aos bens e serviços culturais. Lembrando o eterno ministra da cultura Gilberto Gil: ‘ o povo sabe o que quer mas também quer o que não sabe’. Nesse sentido, é preciso formular uma política cultural que amplie repertórios e estimule a fruição. Seria ingênuo subestimar que vivemos em uma sociedade estratificada, com índices abissais de concentração de renda. Muitos modelos de inventivo através de leis culturais são aplicados em outros países. Existe algum modelo que seja, na sua opinião, mais bem-sucedido? A grande questão não está nos modelos, mas nos significados do Estado. A escolha de modelos de fomento revela decisões políticas, sejam na adoção de um Estado Mínimo, de um Estado Populista, de um Estado Intervencionista ou, ainda, de um Estado Empreendedor. Também o Estado é vítima de mitos que o consideram, ora indutor, ora um obstáculo ao desenvolvimento. Pesquisas apontam que mesmo as economias mais liberais vêm investindo em áreas de impacto como a ciência básica, a cultura e a educação. Os grandes avanços nas áreas tecnológicas, por exemplo, não aconteceram na iniciativa privada. Elas são fruto de longos investimentos de pesquisa financiados pelo Estado. Nesse ano em que elegeremos presidente e governadores, vale a pena observar seus discursos/ promessas de campanha nessas áreas.
Fonte: Tribuna do Norte